Porque havemos de ser uma só pessoa quando podemos ser tantas?
em homenagem a Ray Bradbury, a todos eles...
William Dailridge nunca fora ele próprio.
Perdera-se algures entre a infância e as borbulhas da adolescência e nunca mais se tinha encontrado.
Cyrill Mathews era William Dailridge e nunca o fora, porque não havia semelhanças entre Will Dailridge e Cyrill Mathews. Sim, é certo que ambos tinham aquele sinal junto ao queixo e eram míopes, mas não podiam ser mais diferentes.
Cyrill encontrou Dalila num túnel subterrâneo, um túnel mal iluminado e bafiento de uma colónia de ratos de esgoto em Marte. Podia ter sido em Io, mas acontecera em Marte. Existem coisas que simplesmente acontecem, como aquela. Cyrill disse: – Olá!-, e olhou os doces olhos castanhos.
- Olá estranho. Donde vem?
- De qualquer lado. Todos os lados são iguais. Tem sede? Podíamos beber um copo, os dois.
Will-Cyrill nunca oferecera um copo a ninguém.
Os olhos castanhos concordaram.
Foi já no bar que lhe perguntou:
- O que faz para não morrer como um rato?
- Sou louco. – disse-o com um sorriso nos lábios.
- E isso é profissão?
- Pode ser, se não se ambicionarem coisas demais. É como ser barbeiro ou astronauta.
Ela atravessou-o com o olhar.
- Não brinque comigo, estranho. Nem sei o seu nome!...
- Hoje chamo-me Cyrill e amanhã também, talvez. O futuro é sempre vago e flexível, não merece ser adivinhado.
- Já tentou um psiquiatra?
- Sim, mas durou apenas dois dias. Não arranjei clientes. – ela sorriu.
- Não duvido, estranho. Não, estranho não! Agora é o homem das mil caras!
Foi a vez de ele sorrir.
- Como quiser, minha cara. Bebamos a isso!
- Sim, bebamos a isso.
Beberam.
- Tenho de ir. Até amanhã ou até nunca, Cyrill.
- Espere... Não me disse o seu nome!
- Talvez Dalila.
- Sim, talvez...
O bar era sujo, mas que se pode fazer quando se está umas dezenas de metros abaixo da superfície, metido num caixão complexo que se alimenta de si mesmo uma e outra vez?
A sujidade de hoje é o pão de amanhã, dizia-se, e era a pura das verdades.
Cyrill morreu a meio da noite, muito antes do nascer do sol que ali embaixo não havia. Will-Cyrill amanheceu John James Jones e barbeou o novo ser, desembaraçando-o da barba ainda de Cyrill.
Cyrill era um tanto bisonho mas John James era alegre. Alegre, de uma alegria da cor do sol das manhãs de Verão. Alegre como a fruta madura pendente das árvores, à espera de ser apreciada. John James disse bom dia a si próprio e lamentou-se por Cyrill Mathews ter bebido demais na noite anterior. Tomou um comprimido para afastar as dores irritantes.
Viu Dalila nessa tarde, e embora John James nunca a tivesse visto, reconheceu-a.
- Talvez Dalila! – cumprimentou.
- Provável Cyrill...
- Cyrill foi embora, partiu ainda ontem para a Terra.
- Não partiu nenhuma nave para a Terra, ontem.
- Ele tinha uma nave só sua, muito rápida, feita de pensamento polido e de cheiro a maresia.
- Já almoçou, estranho?
- Não, ainda não. A propósito, chamo-me John James Jones e confesso que nunca gostei muito desse Cyrill, embora ele me intitulasse seu amigo.
Dalila fascinava Will-Cyrill-J.J., mais ainda do que tinha agradado a Will-Cyrill. Olhava-a extasiado enquanto comia o bife de vaca que já fora certamente invólucro de pastilha elástica e salto de bota velha. Bebeu outro gole de vinho que nunca vira o sol antes de falar:
- Dalila, você é linda.
- E você é louco, John James.
- Já me tenho interrogado, e embora o afirme de maneira peremptória, por vezes julgo que não o sou, não da maneira que você imagina. Acho que sou como as cebolas, tenho muitas camadas, e um dia chegarei à última. O que acontecerá depois disso nenhum deles o sabe.
- Talvez se encontre a si próprio.
- Talvez seja o fim. Ou talvez nunca lá chegue, talvez fique travado num ponto qualquer do caminho.
- Não pense nisso John James, limite-se a viver. – ela encheu-lhe o copo de vinho que nunca crescera em encostas.
Duas semanas depois Xeda Lander continuava com Dalila. Avançavam em pequenos saltos, arrastando o fato pressurizado como uma casca de crustáceo. A voz soou aos ouvidos de Xeda transformada pela máquina, metalicamente distorcida.
- Já tentaste enfrentar-te? Seres apenas tu?
Xeda estacou, ficou hirto dentro da casca, o coração batendo rapidamente para o compensar do terrível susto que saíra das palavras dela.
- Só eu? Porquê? Porque hei-de ser só um? Porque não posso ser todos e nenhum, deitar-me fora e reconstruir-me do nada? Porque não posso ser Deus e ladrão, astronauta, chulo ou poste de electricidade?
- Porque os outros não o são, Xeda.
- Xeda? Quem é Xeda? Eu chamo-me Albert! Albert Epstein, investigador de seguros em férias.
- Está bem, Albert. Vamos voltar, sim?
- Os outros são chatos – disse Albert, e deixou-se levar por ela.
As camadas chegaram ao fim naquele dia. Era um dia como os outros, em nada diferente dos outros, mas Will Mil Nomes levantara-se estranho. Sentia-se vazio, um vazio invulgar que parecia devorar-lhe as entranhas. Não se sentiu muitos, e isso preocupava-o. Vestiu-se e foi procurar Dalila.
- Desapareceram!
- Quem? – perguntou Dalila.
- Todos! Todos eles, esta noite. Acordei vazio, acordei só eu. – a voz era angustiada. – É terrível, Dalila...
Ela afagou-o.
- Mas não é o fim, pois não? Como te chamas agora?
- William Dailridge... O velho Will que há tanto tempo desaparecera de mim. Voltei ao meu mais antigo eu, depois de me ter circum-navegado. É terrível ser-se apenas um. Acho que foste tu Dalila, serviste-me de âncora enquanto afogavas todos os outros. Agora estou só.
- Não estás só, tens-me a mim. Ou será que Will não gosta do que Cyrill e tantos outros gostaram?
- Era a única característica comum a todos eles: todos gostavam de ti, e eu também. Eles eram como os meus cabelos e tu cortaste-mos, Dalila, mas juro que não tentarei destruir o templo que construímos.
Ela sorriu como não sorria há muito tempo. Ele sentiu-se menos vazio de si.
Era uma multidão ruidosa, oculta no nevoeiro de conversas cruzadas que a envolvia e que quase apinhava a passagem. Will e Dalila tentaram contorná-la e não conseguiram. Viram-se rodeados pela conversa e pelas pessoas que a mantinham, tentando furar através do mar revolto de vozes.
- Will, Will Dailridge! É mesmo você?
Will voltou-se.
- Que prazer em vê-lo, há quanto tempo não nos encontrávamos? Que surpresa vê-lo aqui!
William Dailridge não disse nada enquanto o outro lhe apertava a mão.
- Não me reconhece? Foi há uns meses, a bordo da "Schizophrenia". Cyrill Mathews, não se lembra?
William Dailridge continuou sem proferir palavra, nem mesmo quando John James Jones o abraçou, ignorando Cyrill Mathews.
Dalila deu um grito de terror e fugiu, fugiu muito depressa através do corredor mal iluminado e bafiento.
Will Dailridge foi arrastado para o bar, instado a beber consigo próprio.
Que fazer quando a realidade é o pesadelo da noite anterior e os fantasmas dos sonhos se tornam pessoas como nós?
Foi algures em Marte, podia ter sido em Io.
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